Não surpreende que, em todo lugar, esteja em curso uma corrosão do sono, dada a dimensão do que está economicamente em jogo.
Já em meados do século XVII, a incompatibilidade do sono com noções modernas de produtividade passou a ser notada. Descartes, Hume e Locke foram apenas alguns dos filósofos que apontavam para a sua irrelevância na busca do conhecimento.
Última das “barreiras naturais", para usar a expressão de Marx, à completa realização do capitalismo "24 horas", o sono não pode ser eliminado. Mas pode ser arruinado e despojado, e existem métodos e motivações para destruí-lo.
Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para verificar mensagens ou informações. Uma figura de linguagem recorrente e aparentemente inócua é o sleep mode [modo de hibernação], inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade.
O dano ao sono é inseparável do atual desmantelamento da proteção social em outras esferas. Estado mais privado e vulnerável de todos, o sono depende crucialmente da sociedade para se sustentar. Um dos exemplos vívidos da insegurança do estado de natureza no Leviatã de Thomas Hobbes é a vulnerabilidade de um indivíduo adormecido diante dos inúmeros perigos de cada noite. Assim, uma obrigação rudimentar dos membros da comunidade é oferecer segurança para os que dormem, não apenas contra perigos reais, mas - igualmente importante - contra a ansiedade e temores que geram.
Diversos pressupostos fundamentais a respeito da coesão das relações sociais se aglutinam em torno da questão do sono - na reciprocidade entre vulnerabilidade e confiança, entre exposição e proteção.
(Adaptado de: Revista Piauí . Ed. 96, 09/14)
Depreende-se corretamente do texto:
✂️ a) O indivíduo adormecido, consoante a proposição de Thomas Hobbes, deve estar em constante estado de alerta ou "modo de hibernaçao", dada sua vulnerabilidade extrema. ✂️ b) O autor constata que a sociedade moderna deve aumentar a qualidade do sono de seus indivíduos, na medida em que este é compreendido como fenômeno fisiológico crucial para a saúde. ✂️ c) A figura de linguagem a que o autor se refere no quarto parágrafo contradiz a ideia de que o sujeito do capitalismo é valorizado pelo aumento de sua produtividade. ✂️ d) Marx corrobora a ideia dos filósofos citados, segundo a qual o sono, um obstáculo natural ao desenvolvimento pleno da sociedade capitalista "24 horas", é irrelevante. ✂️ e) A proteção e guarda de outros membros da sociedade é fundamental para que o indivíduo possa entregar-se ao sono, livre de preocupações e temores reais e imaginários.