O Alpinista de cancela
Por Fabrício Carpinejar
Existem os alpinistas das cancelas do shopping. Os que praticam rapel na hora de mostrar
o comprovante de pagamento. Vou explicar. Já testemunhei infindáveis casos.
Na saída do estacionamento, no momento de encostar o tíquete no visor eletrônico, o
motorista faz a proeza de parar o carro longe do token. Falta braço. É um goleiro de braço curto.
Começa o constran....imento público, absolutamente evitável. Ele fica encalacrado no
quase. Estica-se todo pela janela aberta, sem conseguir a validação. É possível escutar, mesmo
à distância, os seus ossos estalarem em forçado alongamento.
Com o fracasso, com o engarrafamento aumentando atrás de si, com o medo da buzinada
contagiosa dos colegas de ocasião, ele é tomado pela pressa, pela ansiedade, e se lança para
uma missão impossível: tirar o cinto e abrir a porta do carro.
Só que tampouco quer ter o trabalho de apagar o veículo e andar, recusa-se a empreender
a tarefa calmamente do lado de fora. Não aceita desligar o motor. Não admite desistências.
Então, vira um Minotauro: metade gente, metade touro. Mantém incrivelmente o pé no
pedal do freio e pisa no chão com o outro, jogando o seu corpo para frente, escalando o topo da
montanha da cancela, tentando inutilmente levantar o código de barras do cartão para liberar o
acesso.
Não é que seja um péssimo motorista, não é que não goste de bali....as. É a crença afoita
de que passará pela cancela, não precisará estacionar na cancela como se fosse uma vaga
provisória. Ele executa uma decisão equivocada, intuitiva. Pensa que será uma transição rápida,
e não capricha. Encalha na passagem.
Nem sempre tem um fiscal por perto para acudir. Nem sempre ocorre a leitura automática
da placa por câmera. Além da coreografia cômica, não há como o espectador da confusão não
temer um desastre.
A cena ilustra nossa resistência ao recuo. Temos uma noção de que recuar é covardia, é
ausência de convic....ão, é derrota moral, e realizamos parvoíces em nossa vida. Avançamos
mesmo estando errados, e apenas acentuamos nossa conduta desfavorável.
Um grande erro já foi ínfimo antes. O exaustivo adiamento até a reparação é que o torna
irreversível. O perigo mora nos detalhes. Retroceda no ato. Desculpe-se enquanto age.
(Disponível em: www.gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2024/04/os-alpinistas-das-cancelas-do-shopping-praticam-rapel-no-momento-de-encostar-o-tiquete-no-visor – texto adaptado especialmente para esta prova).