Mais iluminada que outras
Tenho dois seios, estas duas coxas, duas mãos que me
são muito úteis, olhos escuros, estas duas sobrancelhas que
preencho com maquiagem comprada por dezenove e noventa
e orelhas que não aceitam bijuterias. Este corpo é um corpo
faminto, dentado, cruel, capaz e violento. Movo os braços
e multidões correm desesperadas. Caminho no escuro com
o rosto para baixo, pois cada parte isolada de mim tem sua
própria vida e não quero domá-las. Animal da caatinga. Forte
demais. Engolidora de espadas e espinhos. Dizem e eu ouvi, mas depois também li, que o estado
do Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes do restante
do país. Todos aqueles corpos que eram trazidos com
seus dedos contados, seus calcanhares prontos e seus
umbigos em fogo, todos eles foram interrompidos no
porto. Um homem — dizem e eu ouvi e depois também
li — liderou o levante. E todos esses corpos foram buscar
outros incômodos. Foram ser incomodados.
ARRAES, J. Redemoinho em dia quente . São Paulo: Alfaguara, 2019. Nesse texto, os recursos expressivos usados pela narradora
✂️ a) revelam as marcas da violência de raça e de gênero
na construção da identidade. ✂️ b) questionam o pioneirismo do estado do Ceará no
enfrentamento à escravidão. ✂️ c) reproduzem padrões estéticos em busca da valorização
da autoestima feminina. ✂️ d) sugerem uma atmosfera onírica alinhada ao desejo
de resgate da espiritualidade. ✂️ e) mimetizam, na paisagem, os corpos transformados
pela violência da escravidão.