Era um gato preto, como convinha a um cultor das boas
letras, que já lera Poe traduzido por Baudelaire. Preto e
gordo. E lerdo. Tão gordo e lerdo que a certa altura observei
que ia perdendo inteiramente as qualidades características
da raça, que são em suma o ódio de morte aos ratos. Já nem
os afugentava! Os ratos de Ouro Preto são também dignos
e solenes — não ria — tradicionalistas... descendentes de
outros ratos que naqueles mesmos casarões presenciaram
acontecimentos importantes da nossa história... No sobrado
do desembargador Tomás Antônio Gonzaga, imagine o
senhor uma reunião dos sonhadores inconfidentes, com
os antepassados daqueles ratos a passearem pelo sótão
ou mesmo pelo assoalho por entre as pernas dos homens
absortos na esperança da independência nacional! E
depois, os ancestres daqueles roedores que eu via agora
deslizar sutilmente no meu quarto podiam ter subido
pelo poste da ignomínia colonial, onde estava exposta a
cabeça do Tiradentes! E quando as órbitas se descarnaram
ignominiosamente, podiam até ter penetrado no recesso
daquele crânio onde verdadeiramente ardera a literatura,
com a simplicidade do heroísmo, a febre nacionalista...
ALPHONSUS, J. Contos e novelas. Rio de Janeiro: Imago; Brasília: INL, 1976.
Descrevendo seu gato, o narrador remete ao contexto
e a protagonistas da Inconfidência para criar um efeito
desconcertante centrado no
✂️ a) desenho imaginativo do casario colonial de Ouro Preto. ✂️ b) efeito de apagamento de limites entre ficção e realidade. ✂️ c) vínculo estabelecido entre animais urbanos e literatura. ✂️ d) questionamento sutil quanto à sanidade dos inconfidentes. ✂️ e) contraste entre austeridade pomposa e imagem
repugnante.