Enquanto estivemos entretidos com os urubus outras
coisas andaram acontecendo na cidade. A Companhia
baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só
pelo prazer de proibir (ninguém podia cuspir pra cima, nem
carregar água em jacá, nem tapar o sol com peneira, como
se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices);
mas outras bem irritantes, como a de pular muro pra cortar
caminho, tática que quase todo mundo que não sofria de
reumatismo vinha adotando ultimamente, principalmente
os meninos. E não confiando na proibição só, nem na força
dos castigos, que eram rigorosos, a Companhia ainda
mandou fincar cacos de garrafa nos muros. Achei isso um
exagero, e comentei o assunto com mamãe. Meu pai ouviu
lá do quarto e veio explicar. Disse que em épocas normais
bastava uma coisa ou outra; mas agora a Companhia
não podia admitir nenhuma brecha em suas ordens; se
alguém desobedecesse à proibição podia se cortar nos
cacos; se alguém conseguisse pular um muro quebrando
o corte de alguns cacos, ou jogando um couro por cima,
era apanhado pela proibição, nhoc — e fez o gesto de
quem torce o pescoço de um frango.
VEIGA, J. J. Sombras de reis barbudos . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Sob a perspectiva do menino que narra, os fatos ficcionais
oferecem um esboço do momento político vigente na
década de 1970, aqui representado pelo
✂️ a) culto ao medo, infiltrado em situações do cotidiano. ✂️ b) sentimento de dúvida quanto à veracidade das
informações. ✂️ c) ambiente de sonho, delineado por imagens
perturbadoras. ✂️ d) incentivo ao desenvolvimento econômico com
a iniciativa privada. ✂️ e) espaço urbano marcado por uma política de isolamento
das crianças.