Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem
não souber que ele possuía um caráter ferrozmente honrado.
Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se
seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um
modelo. Arguíam–no de avareza, e cuidado que tinham razão;
mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e
as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o
saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras, tinha
inimigos que chegavam a acusá–lo de bárbaro. O único fato
alegado neste particular era o de mandar com frequência
escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer
sangue; mas além de que ele só mandava os perversos
e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado
em escravos, habituara–se de certo modo ao trato um
pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e
não se pode honestamente atribuir à índole original de um
homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova
de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava–se no
seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu
Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não
Única. Era tesoureiro de uma confraria e irmão de várias
irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não
se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é
que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele
fora juiz) mandara–lhe tirar o retrato a óleo.
Obra que inaugura o Realismo na literatura brasileira, Memórias póstumas de Brás Cubas condensa uma expressividade que caracterizaria o estilo machadiano: a ironia. Descrevendo a moral do seu cunhado, Cotrim, o narrador–personagem Brás Cubas refina a percepção ironia ao