Texto II
Procura-se uma casa
Admiro as pessoas que vivem a vida inteira na mesma casa. Tenho almejado isso secretamente, mas por uma fatalidade estou sempre mudando. Quando me mudo para uma nova casa, tenho a sensação de que (l 5)vou ficar ali pra sempre. E é nesse estado de espírito que vivo nas casas.
A casa precisa ser natural, cair bem, como um paletó cortado no alfaiate. Precisamos nos sentir bem dentro dela, ainda mais agora, que as autoridades admitiram(l 10) a nossa cotidiana guerrinha civil.(...)
Estou de mudança. Mais uma vez, na minha vida, estou de mudança. A perspectiva da mudança causa em mim sentimentos indefinidos, uma mistura de medo, euforia, excitação, coragem. Há o sentimento de perda, (l 15)claro, vou perder a minha vista para as ilhas, para as chuvas que vêm do infinito, para a imensidão oceânica, vou perder o meu jornaleiro, o Dinho, vou perder os meus porteiros a quem tanto me afeiçoei, o seu Jonas, que lava meu carro, o seu Expedito, o Pará, a escadaria que (l 20)dá nas figueiras seculares, o barulho do vento, a serena ordem da minha biblioteca, o Corcovado, e tudo o que construí pra sempre agora naufraga no irremissível. Mas assim é a vida.
E tenho de decidir para onde me mudarei. Vou (l 25)botar um anúncio no jornal: Procura-se uma casa com janelas, vizinhos discretos, clara e arejada, com sol da manhã no pé da cama, um sótão de onde se possa ver a lua em fevereiro (mas também em agosto e dezembro), e as estrelas por uma clarabóia. Procura-se uma casa (l 30)em que caibam os meus livros, tantos e tão poucos, as minhas velhas cadeiras de vime, os meus castiçais acesos, e vinhos, o meu silêncio e o meu amor, a minha insuportável queda para a felicidade, o tédio, a insatisfação e a melancolia. Uma casa com uma boa cozinha (l 35)onde se possa conversar sussurrando com o homem amado, uma janela dando para o quintal, onde eu possa ver as crianças correndo, crescendo, e o tempo passando como sempre, inexorável e eterno.
MIRANDA, Ana. O Dia Rio, 14 ago. 1999.