O texto a seguir foi publicado pelo jornalista David Coimbra, no jornal Zero Hora, em 02 de maio de 2009 e é referência para as questões 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
1. No filme “Che” há uma cena sutil, breve, porém deliciosa, para mim a melhor de todas as duas horas e 10 minutos de ação, que é a seguinte: o Che está sentado em um sofá, esperando para ser entrevistado por uma TV norte-americana. Trata-se de uma figura imponente, a imagem da virilidade: o guerrilheiro latino, já tornado célebre, metido em seu uniforme militar, calçado de coturnos duros, os cabelos longos ondulando boina afora, a barba revolucionária a emoldurar o rosto expressivo. É deste personagem que uma jovem americana se aproxima, vacilante. Estaca a um metro do sofá. Balbucia em um inglês traduzido pelo intérprete acomodado ao lado do grande argentino:
2. — O comandante permite que lhe faça maquiagem?
3. O Che sorri. Balança a cabeça, entre divertido e irônico.
4. — Não, não... -- recusa.
5. E dispensa a maquiadora. Mas, vendo-a se afastar, vira-se para o intérprete e especula:
6. — Talvez um pouco de pó...
7. A frase é tão surpreendente que o intérprete não entende. Ele repete:
8. — Pode ser um pouco de pó...
9. Um pouco de pó. No Che Guevara! O Che, que não gostava nem de tomar banho. Seus contemporâneos relatavam que ele exalava um cheiro azedo e que, certa feita, despiu as cuecas, equilibrou-as de pé sobre uma pedra e ali elas se quedaram, em posição de sentido no meio da selva inóspita, testemunhas eloquentes dos sacrifícios que um idealista era capaz de fazer pela Revolução.
10. O Che, que, detido pelo exército boliviano no alto dos Andes, manietado, ferido, sujo e desgrenhado feito um urso, foi colocado diante do fuzil que lhe tiraria a vida, e então olhou nos olhos do homem que portava a arma assassina, e ergueu o queixo e, percebendo que o carrasco tremia, disse-lhe sem um agá de hesitação:
11. — Atira, covarde. Vais matar um homem.
12. Foi esse guerreiro indomável que conjeturou:
13. — Talvez um pouco de pó...
14. Che Guevara passou ruge para aparecer na televisão. Ruge! Mas a pequena vaidade, em vez de rebaixá-lo, humaniza-o. Também o Che Guevara queria parecer atraente diante das câmeras, afinal.