Texto
O astrônomo lê o céu, lê a epopeia das estrelas. Ora,
direis, ouvir e ler estrelas. Que histórias sublimes, suculentas,
na Via Láctea. O físico lê o caos. Que epopeias o geógrafo lê
nas camadas acumuladas em um simples terreno. Um desfile de
Carnaval, por exemplo, é um texto. Por isso se fala de
“samba-enredo”: a disposição das alas, as fantasias, a bateria,
a comissão de frente são formas narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber
ler uma partida — esse é o mérito do locutor esportivo, na
verdade, um leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê
coisas no texto em jogo que, só depois de lidas por ele, por nós
são percebidas. Ler, então, é um jogo, uma disputa, uma
conquista de significados.
Estamos com vários problemas de leitura hoje.
Construímos aparelhos aprimoradíssimos que sabem ler.
Leem-nos, às vezes, melhor que nós mesmos. Vi na fazenda de
um amigo aparelhos eletrônicos que, ao tirarem leite da vaca,
são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite, da vaca, e
até (imagino) ler o pensamento de quem está assistindo à cena.
Aparelhos complexos leem o mundo e nos dão recados. A
natureza está dizendo que a água, além de infecta, está
acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia para
nossos netos. É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa
com a interpretação.
Affonso Romano de Sant’Anna. Ler o mundo.
São Paulo: Global, 2011, p. 8-9 (com adaptações).