Atenção: O texto abaixo refere-se às questões de números 11 a 19.
O primeiro... problema que as árvores parecem propor-nos
é o de nos conformarmos com a sua mudez. Desejaríamos que
falassem, como falam os animais, como falamos nós mesmos.
Entretanto, elas e as pedras reservam-se o privilégio do silêncio,
num mundo em que todos os seres têm pressa de se desnudar.
Fiéis a si mesmas, decididas a guardar um silêncio que
não está à mercê dos botânicos, procuram as árvores ignorar
tudo de uma composição social que talvez se lhes afigure
monstruosamente indiscreta, fundada que está na linguagem articulada,
no jogo de transmissão do mais íntimo pelo mais coletivo.
Grave e solitário, o tronco vive num estado de impermeabilidade
ao som, a que os humanos só atingem por alguns
instantes e através da tragédia clássica. Não logramos comovê-
-lo, comunicar-lhe nossa intemperança. Então, incapazes de
trazê-lo à nossa domesticidade, consideramo-lo um elemento
da paisagem, e pintamo-lo. Ele pende, lápis ou óleo, de nossa
parede, mas esse artifício não nos ilude, não incorpora a árvore
à atmosfera de nossos cuidados. O fumo dos cigarros, subindo
até o quadro, parece vagamente aborrecê-la, e certas árvores
de Van Gogh, na sua crispação, têm algo de protesto.
De resto, o homem vai renunciando a esse processo
de captura da árvore através da arte. Uma revista de vanguarda
reúne algumas dessas representações, desde uma tapeçaria
persa do século IV, onde aparece a palmeira heráldica, até
Chirico, o criador da árvore genealógica do sonho, e dá a tudo
isso o título: Decadência da Árvore. Vemos através desse documentário
que num Claude Lorrain da Pinacoteca de Munique,
Paisagem com Caça, a árvore colossal domina todo o quadro, e
a confusão de homens, cães e animal acuado constitui um incidente
mínimo, decorativo. Já em Picasso a árvore se torna raríssima,
e a aventura humana seduz mais o pintor do que o
fundo natural em que ela se desenvolve.
O que será talvez um traço da arte moderna, assinalado
por Apollinaire, ao escrever: "Os pintores, se ainda observam
a natureza, já não a imitam, evitando cuidadosamente a reprodução
de cenas naturais observadas ou reconstituídas pelo estudo...
Se o fim da pintura continua a ser, como sempre foi, o
prazer dos olhos, hoje pedimos ao amador que procure tirar
dela um prazer diferente do proporcionado pelo espetáculo das
coisas naturais". Renunciamos assim às árvores, ou nos permitimos
fabricá-las à feição dos nossos sonhos, que elas, polidamente,
se permitem ignorar.
(Adaptado de: ANDRADE, Carlos Drummond de. "A árvore e o
homem", em Passeios na Ilha, Rio de Janeiro: José Olympio,
1975, p. 7-8)