Para responder às questões de 1 a 4, leia a crônica abaixo.
Somos todos vítimas
Ivan Angelo
Num domingo frio de início do inverno, a população de São
Paulo ficou chocada com uma cena jamais vista na cidade. A
capa do jornal Estadinho trazia uma fotografia que ocupava toda
a largura da página e mostrava uma família de seis pessoas,
homem, mulher e quatro crianças, louros, de olhos azuis,
morando sob o Viaduto do Chá, sem ter o que comer, com
apenas a roupa do corpo e uma cuia de chimarrão que o homem
tomava. O assunto dominou as conversas naquele 2 de junho
de 1918 e invadiu a semana. Como era possível tal cena na
metrópole que mais crescia no país? Que gente era aquela? O
homem, argentino, trabalhara na grande fazenda de café do
milionário Martinho Prado, havia contraído maleita, fora despedido
e depositado com a família na capital, entregue à própria má
sorte.
Noventa e cinco anos depois, as cenas mais vistas na cidade
são de famílias dormindo na rua, sem ter o que comer, sem
roupas e sem chimarrão, e de bandos de miseráveis drogados.
No passado, vimos chocados um caso inédito; hoje, olhamos
com anestesia da indiferença para a malta de zumbis e grupos
de desvalidos, quando não os vemos com silenciosa revolta ou
cauteloso receio. Como deixaram nossa cidade chegar a esse
ponto? Como não fomos capazes de impedir esse horror quando
era possível?
Foram vindo. Das injustiças sociais vieram, dos fracassos
pessoais, das famílias desestruturadas, das fugas, das
frustrações, das secas nordestinas e amorosas vieram, do
abandono, das fragilidades e inseguranças, das revoltas sem
rumo vieram, do alcoolismo, dos pais ausentes, da escola
ausente, das bravatas imaturas, dos reformatórios vieram, dos
abusos, dos maus-tratos, dos baratos, das baladas, da má
educação, das carências, da falta de lugar, da doença mental
vieram, da baixa estima, das prisões, do risco mal calculado,
dos refúgios da alma vieram... e formaram essas multidões
que nos assustam.
Há alguns anos (dez?) dizia-se: é a Cracolândia, estão restritos
à Cracolândia. Aquela água envenenada começou a vazar: Luz,
Sé, Brás, Bom Retiro, Centro, Parque Dom Pedro, Cambuci,
Mooca, Tatuapé, Campos Elíseos, Santa Cecília, Higienópolis,
Avenida Paulista, baixos dos viadutos Rebouças e Doutor
Arnaldo. Os moradores de Perdizes veem, consternados, que
os caídos já amanhecem dormindo na porta dos seus prédios
e casas. As ações espasmódicas das autoridades o que fizeram
foi espalhá-los pela cidade.
Que fazer?
Pobres de nós, perplexos. Brotam sentimentos xenófobos até
nos melhores. São um risco para a saúde pública, dizem,
disseminam doenças, aids, hepatites, tuberculose, sarna,
micoses. Perguntam o que é pior para o conceito de cidade
limpa: uma placa irregular, que vai gerar propina, ou um
maltrapilho defecando e urinando na rua? Se alguém bem vestido
fizer isso,será levado para a delegacia, enquadrado em algum
ato de atentado ao pudor.
Esses bandos de crianças e adolescentes que perambulam
pelas ruas praticando furtos e fumando crack são as peças de
reposição da malta de zumbis, advertem. Perguntam, punitivos:
são infratores, malfeitores, criminosos ou o quê? Em que lei se
enquadram? É enquadrá-los e agir. Afirmam: estão sendo
exportados para São Paulo, as autoridades devem mandá-los
de volta, cuidar dos nossos e mandar o resto de volta.
Estamos precisados de tanta coisa para nos tornar melhores e
vem essa coisa a nos empurrar para o lado mais escuro de nós.
Precisamos nos lembrar de que há uma mãe procurando seu
menino desaparecido no meio daqueles bandos, para oferecerlhe
um banho quente entre uma queda e outra; há uma irmã
que guardou a boneca da caçula para quando a encontrar; há
uma filha tentando salvar o pai já idoso e perdido; há uma esposa
com filho à procura do marido, ainda com esperança... Há
histórias... Há lágrimas... Há vítimas dos dois lados.