Vez por outra, indo devolver um filme na locadora ou
almoçar no árabe da rua de baixo, dobro uma esquina e
tomo um susto. Ué, cadê o quarteirão que estava aqui?
Onde na véspera havia casinhas geminadas, roseiras
cuidadas por velhotas e janelas de adolescentes, cheias
de adesivos, há apenas uma imensa cratera, cercada de
tapumes. [...]
Em breve, do buraco brotará um prédio, com grandes
garagens e minúsculas varandas, e será batizado de
Arizona Hills, ou Maison Lacroix, ou Plaza de Marbella,
e isso me entristece. Não só porque ficará mais feio meu
caminho até a locadora, ou até o árabe na rua de baixo,
mas porque é meu bairro que morre, devagarinho.
Os bairros, como os homens, também têm um espírito. [...]
Às vezes, no fim da tarde, quando ouço o sino da igreja
da Caiubi badalar seis vezes, quase acredito que estou
numa cidade do interior. Aí saio para devolver os vídeos,
olho para o lado, percebo que o quarteirão desapareceu
e me dou conta de que estou em São Paulo, e que eu
mesmo tenho minha cota de responsabilidade: moro
no segundo andar de um prédio. [...] Ali embaixo, onde
agora fica a garagem, já houve uma cratera, e antes dela
o jardim de uma velhota e a janela de um adolescente,
cheia de adesivos.
PRATA, A. Perdizes. In: Meio intelectual, meio de esquerda. São Paulo: Editora 34, 2010.
Na crônica, a incidência do contexto social sobre a voz
narrativa manifesta-se no(a)