A lavadeira começou a viver como uma serviçal que
impõe respeito e não mais como escrava. Mas essa
regalia súbita foi efêmera. Meus irmãos, nos frequentes
deslizes que adulteravam este novo relacionamento,
eram dardejados pelo olhar severo de Emilie; eles nunca
suportaram de bom grado que uma índia passasse a comer
na mesa da sala, usando os mesmos talheres e pratos, e
comprimindo com os lábios o mesmo cristal dos copos e
a mesma porcelana das xícaras de café. Uma espécie de
asco e repulsa tingia-lhes o rosto, já não comiam com a
mesma saciedade e recusavam-se a elogiar os pastéis
de picadinho de carneiro, os folheados de nata e tâmara,
e o arroz com amêndoas, dourado, exalando um cheiro
de cebola tostada. Aquela mulher, sentada e muda, com
o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e
o odor dos alimentos e de suprimir a voz e o gesto como
se o seu silêncio ou a sua presença que era só silêncio
impedisse o outro de viver.
HATOUM, M. Relato de um certo Oriente . São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
Ao apresentar uma situação de tensão em família, o
narrador destila, nesse fragmento, uma percepção das
relações humanas e sociais demarcada pelo
✂️ a) predomínio dos estigmas de classe e de raça sobre a
intimidade da convivência. ✂️ b) discurso da manutenção de uma ética doméstica
contra a subversão dos valores. ✂️ c) desejo de superação do passado de escassez em
prol do presente de abastança. ✂️ d) sentimento de insubordinação à autoridade
representada pela matriarca da família. ✂️ e) rancor com a ingratidão e a hipocrisia geradas pelas
mudanças nas regras da casa.