Leia o texto a seguir:
AUTORRETRATO
Até hoje, quando me olho ao espelho, fico assombrado.
Então, eu sou aquilo que aparece escovando os dentes,
fazendo a barba, verificando o estrago do tempo nos
meus olhos? Sempre fui assim? Ou fui pior ou melhor?
Quando escovo os dentes, por exemplo, sinto o gosto
da infância que nunca foi embora, que me persegue e,
em certo sentido, me ameaça.
Não pedi para nascer e muito menos para crescer. Não
tenho nada com o adulto que substituiu a criança
espantada diante do mundo, gostando e temendo o
mundo. Fugindo e querendo ser do mundo. Não sou
nostálgico, tenho até aversão aos nostálgicos. Sou
melancólico — o que é outra coisa, apesar de parecida.
Em criança, gostava das histórias em que um menino
partia para conhecer o mundo, envolvia-se com os
outros, o gigante que morava no castelo, o duende que
morava na floresta, a bruxa de olhos verdes que tinha
uma cesta de maçãs (como na história da Branca de
Neve), a fada que não tinha rosto, silhueta apenas, e
que, apesar de tudo, me protegia.
Gostando ou não dessa gente, eu não perdia a noção
de que estava cumprindo um destino, uma missão:
conhecer o mundo. Um dia voltaria para dentro de mim,
farto dos outros, farto de mim mesmo. A busca
transformou-se num retorno — por isso, talvez, minha
atividade mais constante é escrever. Um gesto tão
infantil como o de escovar os dentes, sentir na boca o
gosto da espuma crescendo.
Um rito infantil que talvez nunca tenha mudado, é
sempre o mesmo. Daí a pouca ou nenhuma importância
que dou ao adulto que me sucedeu. É um farsante.
Finge levar a vida com a seriedade possível, mas está
louco para que a missão acabe e ele possa voltar a ser
o menino que cresceu contra a vontade. Por isso, foi
mudo até os cinco anos, não conseguia pronunciar
nenhuma palavra, nenhum som articulado. E quando
falou, falou errado. Trocava as letras, até os 15 anos
tropeçava nas palavras. Fez testes (científicos na
época) para avaliar o grau de sua dormência mental. No
fundo, ele até que se distraía: falar errado ou nada falar
era um recurso para não assumir a vida que não quis
nem pediu. Até que fingiu bem. Entre mortos e feridos,
teve seus momentos. Mais do que merecia ou
precisava. Mesmo assim, nunca soube aproveitar esses
momentos. Aos outros, sempre deu a impressão de não
estar ali, de estar indo para outro lugar, aflito para ir
embora e chegar a um lugar indeterminado onde não é
esperado. Mas não importa. A convulsão de ir e de
nunca chegar é um truque que ele aprendeu sem
querer. Seria impossível viver sem esse truque.
O menino mudo até os cinco anos só falou quando
levou um susto. Sua primeira palavra foi um grito.
Prometeu-se nunca mais gritar, ainda que o preço do
não grito fosse a palavra finalmente falada ou
confusamente escrita. O menino encontrou um ofício,
mas não um destino.
(Carlos Heitor Cony, do livro O harém das bananeiras)
Leia atentamente o trecho abaixo e indique qual foi a
figura de linguagem utilizada:
"Quando escovo os dentes, por exemplo, sinto o gosto
da infância que nunca foi embora, que me persegue e,
em certo sentido, me ameaça."